Adilson Paes: “O AI 5 sobreviveu ao processo de redemocratização do país”

14/05/2014 Evento, Notícias

Confira abaixo a íntegra da palestra de abertura do primeiro ciclo do Fórum Goiano de Segurança Pública, ministrada pelo tenente coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Adilson Paes de Souza. O segundo ciclo do fórum será realizado na próxima terça-feira (20), a partir das 8h30, no auditório Eli Alves Forte (sede da seccional). As inscrições estão abertas e devem ser feitas pelo site www.oabgo.org.br/esa.

" – Porque matava?
Primeiro porque me sentia investido de autoridade para tal, no sentido de que podia fazer de tudo. Segundo devido à impunidade. Eu prendia as pessoas que, uma vez conduzidas ao Distrito Policial, eram soltas. Muitas vezes mediante ao pagamento de propinas aos membros da Polícia Civil.     Terceiro a revolta e o ódio que sentia pela situação que deparava no dia-a-dia do meu serviço e que não conhecia até então (extrema pobreza, violência de todo tipo, miséria etc). Quarto, a revolta com a morte de Policiais Militares, como se fosse alguém da minha família.’
    
‘- O que ocorreu desde então?
Matar alguém se tornou um vício. Contudo, não percebi que, com o tempo, o que enxergava de errado no outro não enxergava em mim mesmo. Não enxergava a impunidade em mim mesmo, diante dos atos que praticava.’
    
‘- Quais foram as consequências do erro cometido?
A primeira foi o sofrimento da família. Muitos de meus familiares ficaram doentes física e psicologicamente. A segunda, a perda da função, uma vez que fui expulso da Polícia Militar. Um sonho que se despedaçou. A terceira, a discriminação que minha esposa e meus filhos passaram a sofrer. A quarta, o sofrimento pela ausência do pai e do marido, no seio da família, em datas específicas (Natal, aniversários, formatura de escola etc). A quinta foi que minha esposa tentou suicídio. A sexta, a cobrança da família por ter me abandonado. A sétima, a sensação de abandono e de rejeição que senti.’ (Steve)
    
Outro policial declarou:
‘Na verdade me sentia com superpoderes. Raciocinava da seguinte maneira: Sou policial, tenho arma de fogo, tenho poder e como eles continuaram a praticar os delitos na vizinhança, só restava tomar a decisão de limpar o bairro, porque daí eles não iriam perturbar mais.’

‘3) – Porque achava que possuía superpoder?
Primeiro, pelo fato de andar armado.
Segundo, pelo fato de ser detentor do poder de polícia. Achava que, devido a isto, poderia fazer o que bem quisesse. Fazia blitz policial nas horas de folga.
Terceiro, porque entendia que devia matar alguém para ser aprovado no meio policial. Algumas vezes colegas de farda perguntavam se já havia matado alguém, me sentia cobrado e, para ser respeitado pelo grupo, achei que devia agir dessa maneira.
Praticar homicídio seria uma maneira de sobressair no grupo, de ter prestígio e de ter fama. Fui buscar esse prestígio. Pratiquei o primeiro homicídio, fui preso. Caso contrário, teria continuado e teria praticado outros.’ (Mike)
    
Outro relato de policial:
‘ O assassinato é uma importante ferramenta no cotidiano perigoso do policial militar que trabalha na rua. Se os policiais fossem proibidos de matar, seria melhor que parassem de trabalhar … O policial que comete homicídio é conceituado porque enfrentou o crime." (Sgt Ribeiro).

"Igualmente me via em uma guerra declarada contra os marginais “em que se pode matar ou morrer a qualquer momento”. Devido a isto não há a possibilidade de prisão do oponente. O inimigo deve ser eliminado’.[1]

O que eu acabo de expor é o resultado de entrevistas que realizei com policiais militares que foram presos pela prática de homicídios caracterizados como execuções sumárias extrajudiciais, relatando os motivos que os levaram à prática de tais atos  

A crueza dos dados e a crueldade das ações nos fazem, obrigatoriamente, parar para pensar e repensar no que vem ser e no que deve ser o exercício da atividade policial. Como eles são preparados nos escolas de formação, qual a percepção que eles tem da sociedade e dos limites ao exercício dos poderes que são investidos por lei.

Se esses relatos podem ser enquadrados sob uma ótica pessoal e subjetiva, infelizmente há outros fatores, de ordem estrutural, que colaboram para o agravamento da situação, tal qual ela se apresenta hoje em dia.

‘Embaladas pela declaração de guerra contra o tráfico evocada pelas autoridades’ e ‘consideradas bem sucedidas’ [2] inúmeras operações, mais militares  que policiais, foram e vendo sendo realizadas, impulsionando, ainda mais a adoção de novas estratégias bélicas em confrontos nas favelas e nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, em várias unidades da federação. Estabelecendo-se, assim, um modelo de operação.
    
Nestas operações sobressai a utilização de técnicas de guerra, incluindo o cerco da área por meses e a atuação da PM agindo mais como infantaria de Exército em missões de search-and-destroy, do que como polícia, a capacitação dos policiais para atuar em contextos de ‘guerrilha urbana’, a utilização de veículos blindados (do tipo caveirões) e de armas de alto potencial letal, como por exemplo, os fuzis calibre 7.62. [2]
    
Expressões do tipo ‘guerra ao tráfico’ e ‘política de confronto’ nos remete à triste presença da ‘Doutrina de Segurança Nacional, com seus ‘inimigos internos’, de  tão triste memória.’ [2]. Neste contexto, ‘As violações e o sofrimento impostos à população seriam danos colaterais inevitáveis em prol do bem comum’ [2].
    
Em uma acurada análise das operações realizadas no Rio de Janeiro, o Professor Paulo Sérgio Pinheiro constatou que ‘a partir de 2007 …, operações combinadas das polícias com o Exército se abatem pesadamente no cotidiano dessas comunidades habitadas sobretudo por jovens, onde metade de sua população tem menos de 25 anos de idade’.
     
Ele alertou ainda que ‘Um dos principais problemas que se abatem sobre os residentes das favelas (e das periferias das grandes cidades) é a elevada ocorrência de mortes que deixam de ser registradas como tal por causa da definição estrita de homicídio por parte das autoridades. Um número considerável de execuções cometidas pelas polícias fica sem julgamento, assim como o assassinato de suspeitos e de adolescentes pelas milícias permanece impune.’ [3]
    
‘Os moradores das favelas tornam-se duplamente vítimas nessa história. Primeiro, eles são literalmente vítimas de conflitos entre facções criminosas que utilizam armamento pesado em favelas densamente povoadas. Segundo, eles são vítimas das reportagens que retratam essas comunidades como territórios ocupados por bandidos. Esse olhar leva as pessoas em geral a ter um pensamento reducionista que classifica esses locais como áreas de crime  e nada mais…. (Segundo uma pesquisa) menos de 1% dos moradores de favelas integra gangues de drogas ou se envolve em crimes violentos’. [2].
    
Pouco mudou no modus operandi dos aparelhos policiais. Declarações de pessoas que moram nas favelas revelam que ‘os preceitos legais que regulam as prisões, o direito à defesa legal, interrogação e detenção não existem nas favelas. O desrespeito aos direitos civis é a regra que rege as relações entre a polícia e os pobres’ [2], situação que se agrava com as sucessivas operações "de guerra" travadas naquelas comunidades.
    
‘As pessoas têm medo da polícia; não acreditam na instituição e relutam em denunciar crimes como roubo, porque crêem que tais incidentes quase nunca são investigados ou resolvidos. Denunciar um roubo a uma casa ou a um escritório geralmente é uma ação considerada inútil …’ [2].
    
Segundo a Pesquisa Nacional de Vitimização, do Ministério da Justiça, realizada em 2012, 34,3% dos entrevistados temem em ser confundidos como bandidos pela polícia, 33,2% temem ser extorquidos ou vítimas de agressões policiais. De acordo com essa pesquisa, a taxa de confiança na Polícia Militar de Goiás é de 15,2, em SP de 19,2 e no RJ 10, Na Polícia Civil  a taxa é de 17,1 em GO, 15,8 em SP e 14 RJ pontos percentuais.
    
De acordo com o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (da Escola de Direito – FGV/SP), publicado no 7º Relatório Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 70,1% da população brasileira não confia nas polícias (2013). Índice 8,6% maior que o ano anterior (2012). Na Inglaterra 82% e nos EUA 88% da população confia nas polícias.
    
Fatores que geram a desconfiança segundo o FBSP:  a baixa taxa de resolução dos crimes, a grande burocracia, a ineficiência que se manifesta quando um cidadão procura a polícia e a imagem de violência associada às polícias o que faz com que, no imaginário popular, ela seja mais temida do que respeitada.
    
Por outro lado os policiais também são vítimas dessa violência. Estudos apontam que algumas situações tornam os policiais mais vulneráveis, a saber: treinamento para o confronto, inadequadas condições de trabalho e de meios, situação de risco e o estresse decorrente, pois ‘os policiais costumam passar por traumas mais intensivos do que os cidadãos a quem servem’ [4]. Contudo, o tema ‘vitimização dos policiais ainda é pouco explorado no Brasil’ [5].
    
Um dado alarmante: o risco de um policial morrer assassinado no Brasil é 3 vezes maior que o de um cidadão comum [5].
    
No tocante aos registros das ocorrências constatou-se que  ‘No Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros a polícia passou a classificar, desde o regime militar, pelo nome de ‘autos de resistência’, como também de ‘resistência seguida de morte’,  ‘morte em confronto’, ‘resistência/pessoas mortas’, ‘resistência com morte do opositor’, entre outros, os registros de ocorrência criminal em que um ou mais suspeitos foram mortos durante uma operação policial. A classificação em separado desses casos tem produzido também um tratamento diferencial, e praticamente não há nada que conteste a versão que o próprio policial e seus colegas dão a respeito da ocorrência.’. Entre 2001 e 2011 mais de 10 mil homicídios foram praticados pela PM do Rio de Janeiro sob a rubrica de ‘auto de resistência’. [6] Norberto Bobbio estava correto ao alertar para a existência de dois tipos de cidadãos no mundo: os de primeira e os de segunda classe. [7]
    
Em outros países, como nos Estados Unidos, esses casos são classificados, rotineiramente, como homicídios, e cumpre à investigação e à justiça decidir se ocorreram como uma forma de resistência à prisão, em confronto legal ou em legítima defesa do policial.
    
‘Alega-se que a polícia do Estado do Rio de Janeiro mata mais porque enfrenta uma situação de ‘guerra urbana’ e que apenas responde, de forma a se proteger. Como compreender, entretanto, que nessa guerra a desproporção de mortos – entre suspeitos de crimes e policiais – seja tão grande? Há um policial morto, em média para mais de 40 civis que tombam em confronto armado. Como explicar que alguns policiais ostentem mais de uma dezena de mortes ‘em confronto legal’?, questiona o Prof.Michel Misse, responsável pela pesquisa. [6]
    
Em São Paulo, numa análise da atuação do Grupo de Repressão aos Delitos de Intolerância (GRADI), verificou-se que em dois anos, 2001 e 2002, o grupo foi responsável por 27 mortes. Dos 22 policiais que o integrava, a soma total dos homicídios praticados por eles alcançou impressionantes 167 casos.

Somente um deles envolveu-se em 32 inquéritos policiais militares, de homicídio, em toda sua carreira, quase o dobro das mortes praticadas por toda a polícia de Los Angeles, em 2001 (18 casos), notadamente uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos. [1]
    
Nos EUA, em 2012, houve o total de 410 civis mortos em confronto com a polícia, no Brasil houve 1890 mortes. (mais de 300%). Em 2011, na cidade de Nova Iorque (8,2 milhões hab.) apenas 24 pessoas morreram em confronto com a polícia. No mesmo ano em São Paulo (11 milhões hab,), 242 pessoas e no Rio de Janeiro (6 milhões hab.), 283 pessoas foram mortas pela polícia. [5]
    
Relatório da Ouvidoria das Polícias de São Paulo aponta que mais de uma pessoa foi morta por dia em São Paulo por um policial militar entre 2005 a 2009. Com uma população quase oito vezes menor que a dos Estados Unidos, o Estado de São Paulo registrou 6,3% mais mortes cometidas por policiais militares do que todo os EUA em cinco anos, levando em conta todas as forças policiais daquele país. [1]
    
Segundo a Anistia Internacional a polícia continua hostil, apontando o grave envolvimento de policiais com o crime organizado e grupos de extermínio; além do que ela constatou que moradores de favelas e líderes de comunidades pobres vivem sob o domínio de grupos criminosos armados e que são ‘submetidos a incursões policiais de estilo militar’. Sendo ‘Essa uma situação antiga e mal combatida no Brasil’ [1]
    
Não é sem razão que Philip Alston (2008), relator especial da ONU para execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, afirmou que a polícia se beneficiava de uma ‘carta branca para matar’, havendo um conflito entre o direito de ter segurança e o de não ser vítima de disparos arbitrários por parte da polícia. [1]
    
Os dados expostos revelam que polícia e sociedade encontram-se sob fogo cruzado: morrem muitos civis todos os anos em decorrência da intervenção policial, mas também morrem muitos policiais, especialmente, fora de serviço. [5]
    
O que fazer?
    
Penso que, a supremacia da verdade tal qual Platão enunciou é a base de todo o esforço na busca por solução.
    
Platão, ao se referir ao Guardião da Cidade, exalta a supremacia da verdade. Disse ele ‘A verdadeira mentira é, pois, odiada não só pelos deuses, como também pelos homens.’ [8]  Ele também refuta a utilidade da mentira em todas as circunstâncias.
    
Para Aristóteles a solução dos problemas está na descoberta da verdade. Devem-se deixar de lado as aparências e discutir as dificuldades até conseguir prová-la ou ao menos conseguir reunir a maior número de evidências.
    
Na busca da verdade o erro exerce um papel de importância. Mesmo quando se erra deve-se admiti-lo, e não ocultá-lo. [9]
    
Imbuídos desses valores, devemos discutir com profundidade e abrangência temas como:

– a desmilitarização das polícias, pois é evidente o esgotamento do atual modelo, gestado, em sua essência, no antigo regime. Notem que o Decreto Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969 que reorganiza a Polícias Militares e os Corpos Bombeiros Militares, vigente até os dias de hoje, expressamente menciona o AI 5 como fundamento. Triste constatação: o AI 5 sobreviveu ao processo de redemocratização do país.

– o efetivo controle externo da atividade policial, não só pelo Ministério Público, mas também pela sociedade;

– a existência de efetivos mecanismos de prestação de contas à sociedade (accountabilty);

– a adequada formação dos policiais com a participação de vários segmentos da sociedade, para que eles tenham a correta percepção da sociedade onde atuarão e dos exatos limites ao exercício de suas funções;

– a pertinência do artigo 83 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao estabelecer que o ensino militar reger-se-á por lei própria. O que, na prática, faz com as escolas de formação não sigam o estabelecido pela própria LDB. Além de permitir a interpretação de que militar e policial militar são expressões sinônimas.

– as razões da existência da Doutrina de Segurança Nacional em nossas vidas e a consequente nefasta necessidade da presença do medo e da criação de um inimigo a ser combatido, Idéia esta incompatível com o regime democrático.

‘O governo da democracia é definido como o governo do poder público em público’, nela ‘o caráter público é a regra, o segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, (…)’, afirma Norberto Bobbio. [10]
    
Para Kant ‘Todas as ações relativas ao direito de outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar pública, são injustas’. [11]
    
A justiça, cujo valor é superior ao de muitas barras de ouro, segundo Platão, Também definida como completa virtude (por Norberto Bobbio) e como excelência no verdadeiro sentido da palavra, para Aristóteles, [12] é o que se busca. É isto que se deve ter em mente.
    
Encerrando … Para Platão as qualidades que o guardião da cidade deve possuir são: coragem, temperança, inteligência, autoridade e devotamento ao interesse público. [8]
    
É assim que os vejo senhores advogados, essas são as qualidades que devem estar investidos. Os senhores também são Guardiães da Cidade, tanto é que são indispensáveis à administração da justiça."

Referências Bibliográficas.

[1] SOUZA, A. P. O Guardião da Cidade: reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares. São Paulo: Escrituras, 2013.
[2] MOREIRA ALVES, M. H.; EVANSON, P. Vivendo no Fogo Cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UNESP, 2012.
[3] PINHEIRO, P. S. Prefácio in MOREIRA ALVES, M. H.; EVANSON, P. Vivendo no Fogo Cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UNESP, 2012.
[4] REISER, M., GEIGER, S. Police officer as victim. Professional psichology: reseach and practice. 1984. Disponível em: http://psycnet.apa.org
[5] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ANUÁRIO BRASILEIRO  DE SEGURANÇA PÚBLICA – ANO 7. São Paulo, 2013.
[6] MISSE, M. et al. Quando a Polícia Mata. Homicídios por "Autos de Resistência" no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: BOOKLINK, 2013.
[7] BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
[8] PLATÃO. A República. São Paulo: Perspectiva, 2006.
[9] ARISTÓTELES. The Politcs. Cambridge, United Kingdom: University Press, 1996.
[10] BOBBIO, N. O Futuro da Democracia, Uma Defesa das Regras do Jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
[11] KANT, I. Scritti Politici e di Filosofia della Storia e Del Diritto. Torino: Utet, 1956.
[12] BOBBIO, N, Dicionário de Política. Brasília: UnB, 2004. Cd Rom.

Fonte: Assessoria de Comunicação Integrada da OAB-GO

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