08/03/2023 13:00
Em iniciativa inédita de acolhimento, comissão da OAB-GO em Jataí concede apoio jurídico gratuito a mais de mil mulheres vítimas de violência em 2022
O tapa agride o corpo e o espírito. A palavra insulta a alma. A violência se apresenta em gestos impeditivos: não pode ir a algum lugar, usar uma roupa ou conseguir o próprio trabalho. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, nos anos de 2020 e 2021, 2.695 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, mortas pela condição de serem mulheres. Nesse cenário, toda proposta de acolhimento é mais que bem-vinda. É necessária.
Com esse mote - acolher, cuidar e proteger -, existe em Jataí um grupo de mulheres ajudando mulheres. Uma rede feminina que une as mãos e socorre quem é vítima de violência doméstica, dando além do acolhimento emocional, apoio jurídico gratuito. É a proteção máxima ao direito de existir.
S. V. A. P, de 40 anos, foi uma das atendidas pela Comissão Especial das Mulheres Empenhadas, núcleo especializado da Subseção de Jataí da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO) que, de forma inédita nos moldes em que acontece, realiza acompanhamento gratuito e oferece apoio jurídico e social às mulheres em situação de hipossuficiência econômica que foram vítimas de violência.
S. era casada quando foi agredida pela primeira vez pelo ex-companheiro. No hospital, a assistente social foi a ponte para que ela conhecesse o projeto e uma das advogadas que compõem a comissão. Foi por meio desse contato que a vida de S. mudou. Ela se divorciou, casou novamente e, junto com as duas filhas, tem finalmente a felicidade como sua companhia diária. Mas sua história nem sempre foi assim.
“Quando eu olhava para os cantos, não via saída, mas Deus colocou esse projeto na minha vida para fazer a diferença. Hoje eu vivo minha vida maravilhosamente bem e sem olhar para trás, principalmente sem deixar que ninguém faça comigo o que já fizeram. Não deixo mais, não permito”. Suas palavras são ditas com a força conquistada graças ao apoio das Mulheres Empenhadas.
Sua história foi acompanhada desde o começo, ainda no hospital, até o fim do julgamento do processo no âmbito do Juizado da Violência Doméstica de Jataí, cuja titularidade é da juíza Sabrina Rampazzo. Apenas em 2022, mais de 1.300 mulheres foram atendidas, o que significa cerca de três atendimentos por dia. Em média, a Comissão participa de 40 audiências por mês. “Hoje eu ando de cabeça erguida. Foi com esse projeto que eu nasci e conheci a felicidade. Hoje eu posso dizer: eu sou feliz”, resume S., emocionada.
Os números expressivos refletem o cotidiano de violência ao qual as mulheres jataienses estão suscetíveis. S. é uma vida salva. Uma vida que multiplica aprendizados e salva outras vidas.
“Hoje eu vejo o homem com outro olhar, eu não deixo falar comigo nem com uma pessoa próxima de mim de qualquer jeito. Se eu vir que a pessoa está falando de uma forma inadequada, eu deixo o homem sair, chamo aquela mulher e falo que está errado [a forma como ele falou], que de alguma forma ele está a agredindo em palavras. No meu trabalho, minhas colegas chegam comentando como os maridos delas se comportam, eu falo que está errado. Através desse projeto a minha mente clareou e abriu pro mundo do jeito que as pessoas falam”, relata.
Contexto social
Jataí é uma das cinco cidades mais violentas do Estado e é a segunda com o maior número de casos de violência doméstica contra mulheres. Os números são alarmantes e perdem apenas para Goiânia, proporcionalmente, segundo a vice-presidente da subseção de Jataí e coordenadora da Comissão Especial das Mulheres Empenhadas, Alessandra Heronville. São feitas de 2 a 3 denúncias de violência doméstica por dia na Delegacia da Mulher de Jataí. “É um número muito expressivo e muito assustador”, avalia.
Essa realidade foi o motivador para que a Comissão da Mulher Advogada da subseção, em meados de 2020, à época presidida pela advogada Lúcia Borges Freire, percebesse a necessidade de promover um acolhimento gratuito às mulheres hipossuficientes economicamente na cidade. Lúcia, que hoje é a presidente da Comissão das Mulheres EmPENHAdas da subseção, e o ex-presidente da subseção Antônio Carlos da Silva Barbosa, hoje conselheiro seccional da OAB-GO, afirmam que o projeto nasceu de uma solicitação da juíza Sabrina Rampazzo, titular do Juizado de Violência Doméstica de Jataí, e de Delegados da Polícia Civil para estudar de que forma a OAB poderia ajudar as vítimas de violência doméstica.
“Nós temos em Jataí núcleos de prática jurídica das faculdades de Direito, mas eles não abrangem o Juizado de Violência Doméstica, então nós não temos [esse suporte] nem por parte das faculdades nem por parte da Defensoria Pública mesmo. Esse trabalho está sendo abarcado sob a responsabilidade das Mulheres Empenhadas”, explica Alessandra.
Ela pontua que a percepção sobre a necessidade de realizar um atendimento humanizado e gratuito foi o que levou ao início do projeto ainda como parte da Comissão da Mulher Advogada (CMA).
Depois, o projeto foi transformado em uma Comissão Especial com status permanente no âmbito da subseção, como explica o presidente da subseção da OAB de Jataí, Tiago Setti. “É um projeto que nós institucionalizamos justamente para que se tornasse algo permanente dentro da subseção, com regimento próprio e escala de distribuição de processos para as colegas e que, no ano passado, foram aproximadamente 1.300 processos atendidos por essa comissão.”
Com uma escala de trabalho rotativo, as 25 advogadas que participam da comissão também são acionadas em casos que envolvem outras advogadas, mesmo que elas tenham condições de custear a assessoria jurídica. O pagamento às advogadas constituídas é feito via honorários dativos que são arbitrados de acordo com a tabela estabelecida pela OAB Goiás, o que, segundo o presidente Tiago Setti, representa uma conquista para a advocacia.
Os casos chegam por meio da rede constituída por Delegacia da Mulher de Jataí, Juizado da Violência Doméstica e Subseção de Jataí da OAB-GO. Há uma lista com os nomes e os contatos de todas as advogadas voluntárias. A mulher que chega à delegacia para denunciar é atendida, seu caso é acompanhado desde então por uma advogada da equipe, mesmo antes que chegue ao Juizado. O atendimento desde as fases iniciais à vítima é o grande diferencial, reforça Tiago Setti.
O apoio nos casos é feito tanto no âmbito criminal quanto no cível. Isso significa que as advogadas prestam esclarecimentos sobre os direitos das mulheres e atuam em ações de guarda dos filhos, divórcio, pensão alimentícia e em qualquer outro tema relacionado ao Direito de Família.
"O grupo Mulheres EmPENHAdas realiza um trabalho fantástico de assistência jurídica às mulheres em situação de vulnerabilidade social, impactando sobremaneira nossa comunidade local, permitindo que as mulheres jataienses reconstruam suas vidas livres de qualquer violência", afirma a conselheira federal por Goiás da OAB, Layla Milena Gomes.
S. tomou para si a mudança que o trabalho da comissão trouxe para sua vida. “Antes praticamente eu não vivia, eu vegetava. Eu pensava que era feliz, mas eu era infeliz. Eu era dependente daquele homem, sendo que eu sempre trabalhei, mas eu me via dentro de um cativeiro. Hoje eu vivo, saio, me divirto, rio, converso, ando de cabeça erguida”.
Institucionalidade
A Comissão agrega ainda um aspecto pedagógico ao esclarecer para as mulheres que a procuram as diversas formas de violência doméstica: física, psicológica, emocional, patrimonial e sexual.
Além disso, carrega um potencial empoderador, porque criou uma rede segura de denúncias, em que cada relato fortalece para que outro aconteça, contribuindo para diminuir a subnotificação. Tudo isso só é possível graças à união de todos os entes envolvidos, sejam as polícias, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a advocacia, ressalta a presidente da Comissão das Mulheres Empenhadas, Lúcia Borges Freire.
“As vítimas começaram a não se sentir mais sozinhas nem desprotegidas ou abandonadas e isso fortalece a mulher quando ela procura a delegacia. Ela sabe que ela vai ter um respaldo, ela sabe que não vai ficar desamparada e vai receber orientação. Vejo que essa comissão é um divisor de águas”, analisa Lúcia.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, houve crescimento de 4% de 2020 a 2021 no número de chamadas de emergência para o número 190 das polícias militares solicitando atendimento em casos de violência doméstica, o que representa uma ligação por minuto, em 2021, denunciando agressões decorrente da violência doméstica.
Isso demonstra um cenário ainda incerto e dúbio, afirma o documento: pode indicar tanto que mais pessoas têm procurado as instituições policiais em busca de ajuda, quanto que as mulheres podem ter sofrido mais violência ou que as pessoas estão menos tolerantes às violências cometidas contra a mulher no âmbito doméstico, já que a ligação para a emergência não precisa ser feita pela vítima, pode ser por um vizinho, familiar, amigo.
Sobre o relacionamento com as demais instituições - Ministério Público, Judiciário, polícias -, Lúcia destaca o comprometimento de todos em prol da defesa das mulheres. “Todos abraçaram o projeto, porque esse projeto tem fim social. Em Jataí temos sorte de todos estarem empenhados na busca do bom atendimento, na proteção da vítima para que ela tenha seus direitos preservados”, relata com felicidade. Ela complementa que reuniões com as autoridades são frequentes para aprimorar o trabalho e manter o canal de diálogo aberto.
Histórias
Muitas vidas já foram salvas pela Comissão das Mulheres Empenhadas. O número pode ser ainda maior do que a quantidade de casos que efetivamente chegam à comissão. Para Lúcia, um caso que ela não esquece aconteceu em um fim de semana.
“A vítima tinha apanhado muito do marido, ela estava muito machucada, com o nariz quebrado, por um pedido da assistente social, eu acompanhei essa vítima até a delegacia porque ela não tinha força. Se ela não tivesse acompanhada, ela não teria coragem de registrar essa ocorrência, ela estava muito abalada”. Lúcia conta que a mulher, apesar de ser alfabetizada, esqueceu como escrever o próprio nome devido ao trauma sofrido com a violência.
Para Alessandra, uma história muito marcante foi a da mulher que pulou da laje da casa e, ao cair, teve fratura exposta nas duas pernas. O homem continuou a agredir até que os vizinhos conseguiram socorrê-la. Foi marcante para Alessandra a frase dita pela mulher ao chegar à delegacia: - Eu só tive coragem de fugir dele porque eu sabia que eu ia ter um apoio das advogadas aqui de Jataí. “Esse foi o mais marcante”, lembra Alessandra.
A Comissão das Mulheres Empenhadas possui telefone para contato. Caso necessário, acione pelo (64) 3631-7753.
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